Dois quartos, sala, cozinha e banheiro. O que parece ser a descrição contida em um classificado de jornal, na realidade, está muito longe disso. Os dormitórios voltados para sul não recebem luz necessária para possibilitar um ambiente salubre. O mofo e bolor corroem as paredes da habitação principal impregnando os pulmões de umidade e dificultando a respiração. A pequena janela, encontrada no terreno baldio próximo, não consegue suprir a necessidade de luz e ventilação no quarto das crianças, quarto este que agora se tornou insuficiente com a chegada do novo bebê. Os problemas estruturais encontrados no telhado, ocasionados pelo mal dimensionamento das vigas e a precária instalação elétrica, feita pelo próprio morador, são outras dificuldades que tornam a residência em questão uma bomba relógio.
O sonho da casa própria aos poucos desmorona.
Tais desafios causados pela precariedade da autoconstrução demonstram um antigo problema, a falta de auxílio técnico profissional no momento do projeto e da execução da obra. Infelizmente, hoje em dia, apenas uma pequena porção dos cidadãos consegue usufruir do trabalho de um profissional de arquitetura e/ou engenharia. Este fato resulta em uma enorme quantidade de habitações precárias - geralmente mais caras do que se tivessem sido construídas com a assistência - repletas de problemas relacionados não só ao conforto térmico mas também às questões estruturais.
Mas por que há esse abismo entre o cidadão necessitado de assistência profissional e os escritórios de engenharia e arquitetura? Escuto de muitos colegas de profissão reclamações recorrentes, a falta de trabalho, a dificuldade de inserção no mercado, a competividade e disputa por reconhecimento profissional. Somado a tudo isto está essa mesma insatisfação perante o distanciamento entre a arquitetura social e engajada e o trabalho que se tem feito dentro dos escritórios. Todos estes problemas parecem se relacionar ao caráter elitista da profissão que vem desde os currículos universitários que não abrem espaço para disciplinas sociais e discussão de prioridades na criação de cidades mais justas e democráticas. Apesar da arquitetura mundial ter começado a dar indícios de um maior reconhecimento em relação a posição social da profissão – como o prêmio Pritzker 2016 enfatizando o trabalho e engajamento de Alejandro Aravena – ainda há muito status envolvido na profissão do arquiteto. Há a fomentação de uma ideia de arquitetura ‘autoral de sucesso’ que recebe destaque somente através de grandes obras de alto padrão. Estruturas devidamente elitizadas que trabalham com clientes de peso como única alternativa para alcançar o reconhecimento profissional. A arquitetura submete-se aos desejos de uma pequena classe, sendo constantemente associada a uma necessidade supérflua, situação que ignora a população que realmente a necessita. Há uma inversão de valores e o sonho de uma arquitetura democrática e social se afasta cada vez mais da atuação profissional.
Pois então, de que adianta alcançarmos reconhecimento com grandes obras se fracassamos no papel social da profissão?
Tornar a arquitetura acessível é um processo longo e delicado. Além da urgente e necessária conscientização do papel social da arquitetura, que começa dentro das escolas, estão surgindo estratégias políticas que alimentam uma atmosfera mais esperançosa para tal situação. A principal delas, hoje, talvez seja a promulgação da Lei da Assistência Técnica Gratuita n.º 11.888/08 que permite a assistência técnica publica gratuita no projeto de habitações para famílias com renda mensal de até três salários mínimos. Trata-se de um fundo de recursos públicos que possibilita a contratação de profissionais de arquitetura e engenharia para a construção destas residências.
O trabalho pode contemplar desde melhorias simples como abertura de janelas, redistribuição dos cômodos, até projetos mais complexos como reforço estrutural, dimensionamento de pilares e vigas, restruturação de projetos elétricos e hidráulicos. Além disso, por meio da lei, será possível qualificar o uso e aproveitamento do espaço edificado e seu entorno, formalizar o processo de construção e evitar a ocupação de áreas de risco e de preservação permanente. Vale ressaltar ainda que a assistência técnica pode ir mais além e atingir os processos de urbanização como a requalificação e projeto de praças, ruas e parques.
É justamente através de um trabalho individual e personalizado que a lei da assistência técnica surge como um importante passo para a democratização da condição habitacional no país. Essa característica afasta o projeto dos empreendimentos massificados e reproduzíveis, como o Minha Casa Minha Vida, já que mantem as famílias nos lugares onde vivem, usufruindo da infraestrutura – em alguns casos – já existente.
Apesar de estar em vigor desde 2008, o desconhecimento desta lei faz com que ela seja ignorada na grande maioria das cidades brasileiras, aumentando o distanciamento entre o profissional e a comunidade carente. Tendo em vista a importância da atuação social do arquiteto e valendo-se dessa lei, um grupo de estudantes e jovens arquitetos, juntamente com o IAB/SC, lançaram um financiamento coletivo para iniciar a implementação da lei em Florianópolis. Por meio deste projeto, a ONG Peabiru será convidada a ministrar a oficina que capacitará uma equipe multidisciplinar envolvendo arquitetos, engenheiros, advogados, assistentes sociais e os próprios moradores como agentes do processo. Atuando em uma comunidade local, o grupo diagnosticará os problemas e traçará diretrizes de atuação além de definir uma agenda para a implementação da assistência técnica.
É um pequeno passo para uma luta gigante. Mas por acreditar na importância social da arquitetura e no sonho de torna-la acessível e democrática a todos é que se lança esse desafio. Através de iniciativas independentes como esta alimenta-se um novo campo de ação para os arquitetos fazendo-os sair dos escritórios em altos prédios comerciais e encontrar a periferia, fomentando o real envolvimento com a comunidade.
Coletivamente, a luta pela democratização da profissão do arquiteto alcançará a margem, as habitações informais, o cidadão carente. E mudar a vida de uma pessoa através da arquitetura é o melhor reconhecimento que poderíamos ter dentro da nossa profissão.
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Camilla Ghisleni é Arquiteta e Urbanista, formada pela Universidade Federal de Santa Catarina, sócia-fundadora do escritório Bloco B Arquitetura e mestranda do curso de arquitetura no programa Pós/ARQ/UFSC. Colabora com o ArchDaily Brasil desde 2014.